ARTHUR L. DO CARMO
Residente do Distrito-sede de Terra de Areia
O município de Terra de Areia intercala-se entre áreas rurais e zonas urbanas mais recentes. A cidade foi fundada junto ao rio Cornélios, local onde se concentrava a economia antes da chegada da BR-101. Com a construção da rodovia, a malha urbana migrou para perto da estrada, distanciando-se do porto já desativado. Hoje a cidade encontra-se isolada em área seca, distante da bacia hidrográfica formada pelas lagoas Itapeva e dos Quadros e pelos rios Cornélios e Três Forquilhas.
Como diz Arthur L. do Carmo, artista residente no bairro da Boa Vista, essa é uma história do Brasil, e não só de Terra de Areia. Implantada a partir de um projeto nacional iniciado com Juscelino Kubitschek e levada a cabo posteriormente, a estratégia desenvolvimentista de integração do país via condução rodoviária, desativando ferrovias e malhas fluviais, marca até hoje a paisagem brasileira.
Ao observar esses deslocamentos, Arthur empreendeu uma caminhada. Percorreu a distância que separa o atual centro urbano do antigo porto, em direção às margens do rio. A cada 100 passos, coletava uma pedra, e a cada pedra, uma palavra – inatingível – era gravada na areia. Ao chegar no passo 101, recomeçava a contagem.
Em um trajeto à contramão daquele que carregou a cidade da orla do canal até a aridez do asfaltamento, em um caminho histórico inverso, o artista propôs um retorno: um percurso em direção a memórias distantes, a tempos saudosos vividos junto com as águas de lá.
“Água do parto, água do rio, água do banho, água da chuva, água da poça...” A sinfonia de um imaginário hídrico, coletada com moradores da Boa Vista e narrada pela voz de Seu Volnei, acompanhou os passos do artista no vídeo que registra o trabalho.
O cântico, a distância percorrida, o peso carregado, as pedras, a caminhada rumo ao ponto de origem, todos esses elementos apontavam aspectos litúrgicos. Sua proposta de peregrinação estabelecia algum tipo de diálogo com o universo teológico cristão, algo já constituinte do processo de formação do artista. Tempos atrás, Arthur se envolveu com o movimento de padres operários, cujo fundamento prevê a aproximação de valores evangélicos da práxis do trabalho. Seu interesse sobre o domínio do esforço e do trabalho também apareceu em uma segunda obra realizada.
Durante a residência, investigou e registrou as estruturas materiais que denotavam os ofícios locais. Direcionou seu olhar aos galpões esparramados pela paisagem e à arquitetura rural, documentando restos de produção que se avistavam pelos quintais da Boa Vista.
Desloquei meu olhar para os arredores, percebi que mesmo nos jardins mais bem organizados sempre havia alguns montículos de rejeitos, caliça, detritos, entulhos, monturos, nomes que fui coletando com os moradores locais. Diziam estar destinados a algum projeto ou necessidade futura. Me interessavam os percursos daquelas materialidades e as relações que elas estabeleciam com esses projetos futuros: futuros incertos, mas armados de alguma possibilidade. No quintal da casa onde permaneci, também havia um montículo: pedaços cortados de uma árvore tombada. Eles haviam sido cobertos por uma vegetação de gramíneas, formando uma paisagem ruderal. Numa necessidade de construir algo, me propus a remontá-la. Talvez como sinal de outro tempo, talvez numa vontade de sobrepor tempos diferentes de vida. Desenterrar uma árvore, pô-la de pé. Morta, mas de pé. Levante. — Arthur L. do Carmo
A matéria morta, escondida, quase decomposta e já integrada aos ciclos naturais, foi sendo aos poucos descavada. Feito um processo de autópsia, Arthur revisava galhos e troncos, coordenava aquele corpo em um novo arranjo, elevando-o como se buscasse vida.
Em ambos os trabalhos, Arthur apresenta-nos um mundo desconexo. Irracionais, suas ações sugerem gestos sem sentido: gestos de peso, de esforço e suor em nome de um empreendimento inútil. Ainda assim, pairam neles uma potência de insurreição. Seja ao erguer algo já morto, seja ao peregrinar em direção a um passado distante, suas operações assinalam um desafio ao estado das coisas. Insinuam até certa libertação como fruto da própria ilusão.
E assim, ativam metanoia. No contexto teológico, a metanoia indicaria um processo de elevação via penitência, de transformação do pensamento a partir de um olhar sobre o passado. Em seus gestos de contrafluxo, em seu esforço de freio e renúncia a um movimento teleológico, pode ser que ali se ativaria o despertar de algum tipo de intuição redentora. Uma tentativa de recusa à temporalidade dada. Um Sísifo na contramão.
_ Texto de Lola Fabres
1. Termo discutido durante a residência a partir de diálogos com o artista Daniel Caballero.
2. Palavra que, espontaneamente, “nos ajuda a fazer uma abordagem poética do político”. Entrevista com Georges Didi-Huberman para L’Humanité a propósito da exposição Soulèvements, no museu do Jeu de Paume (Paris, novembro de 2016), realizada por Magali Joffret.